segunda-feira, outubro 10, 2005

Nunca mais

A tempos não lia algo de tão bom gosto literário.
sublime, magnífico, maravilhoso.
Ótimo saber que tenho junto a mim uma das mentes mais brilhantes que tive o prazer de conhecer.

Nunca mais

Mais uma noite, buscava em minhas leituras um outro mundo. Algum que me tirasse deste, pois, para mim, já nada valia. Passava as madrugadas lendo até a exaustão e dessa forma resistia à amargura e à culpa que rondavam minha alma.
Tais sentimentos fizeram de mim um homem doente. Depois da ida da minha querida Leonora, os anjos que guardavam esta casa, trazendo harmonia e felicidade, se dispersaram e nunca mais voltaram. Dessa maneira, fiquei só e a solidão traz consigo coisas que muitas vezes podem ser perturbadoras para a consciência humana.
Naquela noite em especial, nenhuma leitura acalmava meu espírito. A tristeza do amor saudoso emergia em meu coração fazendo-o bater descompassado, como se algo no universo estivesse fora de seu lugar habitual. A tempestade que caía jazia as lágrimas da partida ainda sentida em meu ser.
Previ que seria uma noite longa como tantas outras que já vivi. Ares de outros mundos cobriam toda a casa e fazia daquele ambiente um espaço onde pairava o sonho, o invisível e eu já não sabia se meu solitário lar se encontrava na mesma rua em que sempre estivera. Num instante que os sonhos tentavam me conduzir a Morpheu, batidas em meus umbrais fizeram com que meus olhos despertassem daquela doce sedução que me entorpecia sem que, entretanto, a realidade voltasse a tomar conta do ambiente. A energia e a atmosfera mantiveram-se presentes e fizeram meu corpo levantar-se para ver, assim, que estranho visitante batia em meus umbrais.
No entanto, nada encontrei quando procurei o indivíduo que lá chamava com suas batidas. Com a sensação que tudo flutuava, como que se encontrasse em um diferente plano astral, chamei pela minha amada, pois naquela noite os umbrais que separavam os mundos estavam abertos, eu sentia.
Quando tais pensamentos me recorreram busquei qualquer sinal que trazia minha esposa ao seu antigo leito e novamente batidas ouvi. Da janela surgiu àquela entidade no cômodo em que fazia minhas leituras e que me conduziam a outros mundos.
Olhava-me com o olhar daquele que bem conhecia. Longas datas me ligavam àquele ser da noite. Brilhava com a certeza que seu olhar me atingia e me rasgava ainda mais em culpa e amargura.
De cima de minha Atena, aqueles olhos demoníacos faziam as lembranças de minha amada surgir em minha mente e respondiam as minhas perguntas sem que precisasse pronunciá-las. “Nunca mais”, dizia a ave agourenta para minha esperança de rever Leonora. “Nunca mais”, para a vinda da paz nesta casa solitária. “Nunca mais”, para que aquela visita, com seu olhar inquisidor, desaparecesse da minha existência.
Percebi, assim, que escravizado estava. Toda a eternidade, aquele ser permaneceria ao meu redor, lembrando-me de minha amada e da dor da culpa de perdê-la de forma tão inesperada aos meus olhos. Como eu imaginaria que ela partiria, uma simples febre a levaria junto às hostes celestiais! E o olhar daquele negro ser mostrava-me a negligência do meu amor à Leonora.
Despertando-me da magia daquele olhar que me prendia, um barulho fez-se na janela. Notei que ela abrira-se devido à tempestade que caia. Neste instante, percebi que de pé estava, diante do reflexo da minha imagem no espelho; entretanto, o olhar que lá se via era aquele que dizia a toda hora: “nunca mais”.

Marina Gama
Baseado no poema de Edgar allan Poe "O Corvo"

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom!